Estórias Quilombolas

Estórias Quilombolas.

Ao começar a pensar sobre o que escreveria para apresentar este livro, vieram-me à cabeça as estórias que ouvi quando criança. Lembro-me bem de D. Ambrosina, que ia regularmente a casa de minha amiga Elisinha, com quem eu brincava de boneca, apenas para contar estórias. Era uma senhora de cabelos brancos que sentava em um banquinho, cercada de crianças ávidas por ouvir suas estórias de bicho, de reis, de rainhas que não estavam escritas em nenhum livro. Sua imaginação era fértil e as crianças viajavam pelo mundo dos sonhos e com ela se inebriavam, todas quietas, boquiabertas, embriagadas num encantamento, ouvindo sem respirar os bichos falarem, as princesas casarem, os meninos e meninas voarem…

Na minha casa vivia Caridade, outra contadora de estórias que marcou indelevelmente minha vida. Foi de sua boca que ouvi as primeiras estórias das áfricas que ela, por sua vez, tinha ouvido de sua mãe, que tinha ouvido de sua avó ainda na senzala. Era uma mulher altíssima (talvez somente na minha imaginação), também de cabelos brancos, quase sempre amarrados por um pano.

Ela trabalhava em casa de meu avô, homem bravo e temido por todos, mas que respeitava a velha senhora que acompanhava sua família há muitos anos. Meu pai dizia que a conhecia desde a idade de 16 anos. Ela me contou estórias mais fortes e reais do que as de D. Ambrosina, de como os africanos escravizados eram maltratados pelos senhores, de como trabalhavam de sol a sol, de como aproveitavam as sobras do porco, inventando a feijoada. Contava, também, das rainhas que aqui aportaram, deixando para trás uma vida digna para serem tratadas como servas. As estórias de luta e de resistência dos negros me eram contadas como estórias heroicas, reais, entretanto, na minha imaginação infantil pareciam contos da carochinha.

Muitos anos depois, minha vida foi influenciada pelas estórias ouvidas nos quilombos. Em minhas andanças pelas comunidades remanescentes, ouvi as mesmas estórias de luta e resistência contadas por Caridade e ainda as estórias do tempo em que os bichos falavam, estórias de assombração e mistério, estórias de fé, estórias de santos. E comecei a perceber que o encantamento provocado pelos contadores de estórias, nas comunidades era o mesmo que eu sentia quando criança. Eles ou elas eram lideranças respeitadas que passavam os valores para a comunidade, via tradição oral. Não tem hora marcada para contar e ouvir estórias nas comunidades.

Qualquer oportunidade é aproveitada! Nas festas, na capina na roça, durante as rezas para os santos, se chega alguém de fora ou para eles mesmos e tanto para crianças como para adultos. Principalmente os mais velhos – guardiões da história – estão sempre disponíveis para apresentar seus relatos, têm prazer em contar tudo a quem lhes inspira confiança.

Tive esse privilégio ao ouvir estórias do Jair (quanta saudade!!!) na Comunidade de Mato do Tição, assim como de D. Divina e de Seu Joãzinho, de D. Georgina e suas “ajudantes” na comunidade de Santa Rosa dos Pretos, em Itapecurumirim/Maranhão, de Seu Antonio Chico e D. Tomásia, em Morro Alto, Osório/RS e em Pombal, em Goiás, de Seu Olidio e seu pai, e tantos outros pelo país a fora.

Os momentos de invasão são enfrentados com fé nos deuses africanos (orixás, voduns, encantados, invisíveis) e nos santos padroeiros, dançando e cantando. As estórias do tempo que Jesus andava pela terra ensinando que o bem atrai o bem e o mal atrai o mal, que assombração aparece para os invejosos e descumpridores dos deveres, têm o mister de passar valores importantes para os moradores das comunidades remanescentes de quilombos. Os anos vão passando e as estórias permanecem. Até quando, ninguém sabe.

Diante disso, decidi fazer este registro para que todos possam conhecer um pouco do imaginário dos moradores dos quilombos, para aprender parte dessa cultura que perpassa norte e sul, leste e oeste do Brasil.

Algumas estórias que são contadas no Maranhão são repetidas em Goiás e em outros estados. Ficamos estupefatas quando Milza, professora kalunga, que nos ajudou a realizar as oficinas para ilustração do livro, nos contou que conhecia uma estória semelhante à contada no Maranhão, relativa a um homem que virava lobisomem, que até era conhecido de sua mãe.

Oferecemos a todos os brasileiros, e principalmente às crianças, essa riqueza poética, parte de uma pesquisa de vinte anos. As estórias foram reescritas para facilitar a compreensão da linguagem oral.

Como colaboração para com os professores no uso didático das estórias, anexamos algumas sugestões de atividades, mas contamos com a imaginação e criatividade de todos para reescrever as estórias e contar muitas outras. Afinal, como dizia D. Georgina, mãe-de-santo da comunidade de Santa Rosa dos Pretos, ao referir-se a uma menina de 7 anos que imaginava muito: “- A cabeça dela é um pássaro…”

Que a cabeça de todos os leitores se tornem pássaros de vôos bem altos!

Gloria Moura – Organizadora (Fonte MEC);

Estórias Quilombolas

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