27% dos municípios brasileiros repassam verbas do ensino básico para outros níveis de ensino

Dinheiro que deveria ser destinado a creches e pré-escolas está sendo repassado para o ensino médio e superior, que não são prioritários para os municípios.

Um levantamento feito por tribunais de contas apontou que 1.494 prefeituras do país — o equivalente a 27% das cidades brasileiras — destina dinheiro público para os níveis de ensino médio e superior enquanto não cumprem a lei federal que estipula metas de matrículas para o ensino infantil.

O documento do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) foi obtido com exclusividade pela GloboNews.

O Plano Nacional de Educação (PNE), uma lei federal aprovada em 2014, determina em sua Meta 1 que o Poder Público deveria, até 2016:

  • ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até três anos;
  • e universalizar a educação infantil na pré-escola para crianças de 4 e 5 anos.

E é justamente isso que 27% dos municípios brasileiros não estão conseguindo cumprir, parcial ou integralmente.

Ao mesmo tempo, esses municípios estão destinando uma verba que seria para esse fim (creche e pré-escola) para outros níveis de ensino (médio e superior) — que não são prioritários para os municípios.

A regra constitucional não impede que eles destinem recursos pra outras áreas de ensino, mas isso só pode acontecer quando as necessidades prioritárias já foram garantidas.

O cumprimento ou não desta meta foi um dos pontos analisados no levantamento coordenado pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), em documento obtido com exclusividade pela Globonews.

Thiago Pinheiro Lima, presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas (GNPCC), explicou, em entrevista à Globonews, que o motivo do descumprimento do Plano Nacional de Educação por parte das prefeituras não foi a falta de recursos.

“Este levantamento identificou que 1.494 Municípios não cumpriram a lei não por falta de recursos orçamentários, mas por não darem prioridade ao que a lei determina, porque foi identificado que esses mesmos municípios estão gastando com ensino médio e com o ensino superior, o que não é prioridade desses municípios”.

O que vai acontecer agora

Após o levantamento, o presidente do CNPGC expediu ofícios a todos os 31 procuradores-gerais de Contas do país para que os prefeitos dessas quase 1.500 prefeituras tomem providências e priorizem o investimento na educação infantil, conforme determinam a Constituição e o PNE.

“A partir da notificação, os prefeitos estarão alertados de que precisam priorizar o gasto em educação para o ensino infantil. Não podem mais alegar desconhecimento. Somente se atendida essa obrigação é que ele poderá destinar recursos, se sobrarem, para outros níveis de ensino”, diz Lima.

Problema é prejudicial, diz especialista

De acordo com o consultor e pesquisador em educação da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Alexandre Schneider, a não universalização do ensino infantil tem um impacto grave na vida das famílias e no desenvolvimento do país.

“O melhor investimento que um país pode fazer é na infância. É aí que as crianças começam o seu processo de desenvolvimento cognitivo, isso vários especialistas da economia e da neurociência já apontaram e apontam. O fato de não conseguirmos garantir o direito dessas crianças a ter o acesso à creche e à pré-escola prejudica gravemente o seu desenvolvimento futuro.”

Faltam vagas no ensino infantil

Patrícia Gonçalves, cuidadora, está há dois anos esperando uma vaga na creche para a filha mais nova, Esther, de 3 anos. Primeiro, ela entrou na fila por uma vaga em Santana de Parnaíba, município da Região Metropolitana de São Paulo, onde não conseguiu vaga. A família precisou se mudar para Cajamar, também na Região Metropolitana da capital, e entrou em nova fila. Hoje, Esther é a 47ª na espera por uma vaga.

“Já perdi uma oportunidade de emprego porque não tinha vaga na creche”, conta a mãe de cinco filhos. “Me sinto uma pessoa esquecida, que não tem prioridade. Toda criança tem que manter vínculo com outras crianças, precisa iniciar a aprendizagem. A gente se sente humilhada, parece que você está implorando uma vaga”, desabafa.

Em nota, a prefeitura de Cajamar informou que está comprometida a “obter a vaga para a criança” e que, além do aplicativo, as matriculas das crianças podem ser feitas por meio do site da prefeitura.

Nota da prefeitura de Cajamar

O secretário municipal de Educação de Cajamar, Prof. Dr. Régis Souza, informa que o município atende hoje 89% das vagas de creche e trabalha para chegar aos 100%. Somente no mês de fevereiro, a cidade irá abrir três novas escolas, promovendo a ampliação de mais de 1400 vagas. O município está comprometido a obter a vaga para a criança e informa que, além do aplicativo, as mães podem matricular seus filhos por meio do site da prefeitura.

Nota da Confederação Nacional dos Municípios (CNM)

A Confederação Nacional de Municípios (CNM) esclarece inicialmente que os dados apresentados no relatório do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) são diferentes dos dados públicos disponíveis e consolidados pela entidade, a exemplo do Censo Escolar, do Ministério da Saúde (vide estudo de estimativas populacionais por Município que disponibiliza a idade por pessoa), da Pnad Contínua, do FNDE e da STN.

O levantamento da Confederação, que acompanha continuamente o tema, aponta que, dos 1.494 Municípios do relatório, apenas os dados de 531 Municípios coincidem com a base da CNM. Os demais apontam diferenças pontuais, tanto nos percentuais alcançados em atendimento à meta de creches e à universalização da pré-escola, quanto na declaração de gastos.

Assim, como não teve acesso à metodologia, a entidade destaca que o relatório pode não ter considerado aspectos essenciais para analisar a realidade local, como: i. a utilização de matrículas municipais ou públicas; ii. quais despesas com ensino médio e educação superior estão sendo consideradas.

Dados do FNDE sobre gastos com transporte escolar, por exemplo, apontam que 1.364 dos 1.494 Municípios receberam recursos dos governos estaduais para custear o transporte dos alunos de ensino médio do Estado. Os Municípios, ao transportar esses alunos, contabilizam esse gasto como despesa de ensino médio, mesmo alguns não possuindo matrículas nessa etapa de ensino. Foi possível identificar alguns desses casos com base nos dados do Censo Escolar (2020), do Siope e dos Portais da Transparência dos entes municipais. Nesse contexto, os Municípios não estariam “aplicando recursos em níveis de ensino não prioritários”.

Importante destacar, ainda, que os Municípios são aqueles que aplicam, percentualmente, maior parte das receitas à Educação, em média 27%, enquanto que Estados aplicam, em média, 26%, segundo dados de 2020 (Siope). Além disso, enquanto o número de matrículas nas redes municipais cresceu entre 2017 e 2022, nas redes estaduais decresceram 9,01%. Ressalta-se ainda que, por estarem na ponta, os Municípios são os mais cobrados pela população em relação a oferta de serviços públicos.

Por fim, importante alertar que a meta de atender 50% das crianças de 0 a 3 anos em creches é nacional e que metas diferentes devem ser construídas para cada Município de acordo com a sua real necessidade.