“As Crianças Estão Se Habituando A Não Precisar De Relações Duradouras”

“As Crianças Estão Se Habituando A Não Precisar De Relações Duradouras”
“As Crianças Estão Se Habituando A Não Precisar De Relações Duradouras”
Este texto é uma transcrição “literal” da fala do professor Mario Sergio Cortella em uma palestra a estudantes. Vide vídeo no rodapé.

Se eu contar que os pais e os filhos almoçavam e jantavam à mesa você não vai acreditar

Como era a minha vida em Londrina, a cidade onde nasci, embora more em São Paulo há 35 anos?  Era assim: Tinha uma mesa com cadeiras em volta.  Sabe o que a gente fazia nesta mesa? Se eu contar, você, que é mais jovem, não vai acreditar: a gente almoçava reunidos. Não sei se vocês sabem o que isso.  Aliás, almoçava e jantava. Pais e filhos se encontravam, filhos tomavam broncas, davam risadas, ouviam histórias de família… Os pais eram autoritários, mas a gente convivia. Aprendi a não pegar bife com a mão, nem batata frita. Aprendi a não pegar o último pedaço e assim por diante.

Na parede da casa, minha mãe tinha um guarda-louça, aqui em São Paulo chamamos de cristaleira. Ali ela guardava tudo o que tinha ganhado no casamento para usar num dia especial que nunca chegou. Com o tempo ela foi distribuindo as peças entre os filhos, netos e parentes. A minha família, de formação católica, tinha um altarzinho com a imagem de Nossa Senhora. Também havia uma poltrona de balanço do meu pai.

Se eu contar que a noite a gente se reunia para conversar, você não vai acreditar

Se eu contar uma coisa você não vai acreditar. As poltronas ficavam de frente uma com as outras. Sério. Sabem por quê? A finalidade é que as pessoas se vissem. Aliás, sabem o que a gente fazia à noite? Se eu contar você não acredita. A gente conversava. O vizinho era bem vindo. O outro ser humano era vem vindo. Quando o outro humano chegava, a gente se alegrava porque o outro ser humano era a possibilidade de uma vida. As crianças se animavam quando o outro humano chegava porque ele contava histórias; trazia novidades.
Hoje, parentes e outro humano é um transtorno. Aliás, se diz assim: “quero ir pra casa hoje à noite e quando lá chegar não quero ver ninguém, falar com ninguém”. Muita gente diz mais: “Eu estou aqui  com vocês durante dez, doze anos,  trabalhando, convivendo, mas vocês vão ver uma coisa: se eu ganhar sozinho na Mega Sena acumulada, se eu ganhar sozinho 20 milhões na Mega Sena acumulada, eu sumo, nunca mais vocês vão me ver”. Essa expressão é uma expressão que vai sendo ouvida. Tem gente da época do blecaute que aconteceu no país,  que quem  se lembra de quando a luz era desligada a família entrava em pânico. Não sabia o que fazer à noite. Toda a relação familiar era intermediada pela eletricidade.
Os filhos diziam assim: “Mamãe, não tem luz, o que vamos fazer? “Ah, vão dormir”. E aí, lá iam cinco, seis humanos com suas histórias, desejo, projetos, sonhos. Cada um com a possibilidade de cantar um para o ouro, fazer uma poesia, contar uma história, dar risadas e… depois iam dormir.

Se eu contar que os filhos corriam para abraçar os pais você não vai acreditar

Um dia, há 35 anos, numa sexta-feira, no fim da tarde, meu pai chegou e tocou a buzina do Jeep. No Paraná se usava Jeep naquela época. E quando ele tocou a buzina nós fizemos o que fazíamos todos os dias, corremos para abraçá-lo. Houve uma época, na história humana, que quando os pais chegavam os filhos corriam na direção dos pais. É sério. E nós corremos para abraçá-lo.
Com qual finalidade? A gente tinha um sentimento de gratidão. Primeiro corríamos para abraçar e depois reclamava de um ou outro irmão. Mas a gente corria porque tinha um sentimento de gratidão. E vinha de onde esse sentimento?  Do fato de que ele trabalhava para nos sustentar. Hoje, atenção, no mundo criança a ideia de gratidão é muito escassa. Inclusive porque ela é assim no mundo dos adultos. Raramente se ouve a palavra “obrigado”. Tudo é obrigação sua. Tudo você deveria ter feito.  Agora, cuidado hem? Eles não nasceram prontos.  Como ninguém nasce pronto tem alguma coisa estranha nesse meio.  Alguma coisa nós vamos construindo nas relações que as contaminou também. E essa contaminação se deu na ideia de que você é um servidor.  Aliás, em breve as relações ente pais e filhos podem ser medidas também pelo Código do Consumidor; um Contrato de Prestação de Serviços.

Se eu contar que tudo isso foi substituído por algum tipo de entretenimento você vai acreditar

Olhe uma coisa estranha: Nesse dia meu pai chegou e tinha uma caixa grande no Jeep. Ele trouxe a caixa e a colocou em cima da mesa. Quando ele abriu tinha dentro da caixa uma televisão Telefunken preto-e-branco com pezinhos de madeira. Você nunca deve ter visto uma dessas.
Olha que coisa interessante: a partir desse dia nossa vida mudou. Três grandes mudanças aconteceram. A primeira delas: sai Nossa Senhora Aparecida e entra a televisão. A segunda mudança: as poltronas ficaram de frente para a televisão.  A terceira mudança:  a gente não conversou mais.
Com isso vizinho passou a ser mal vindo. O ouro humano chegava e a gente continuava com o aparelho ligado. Aí, olhávamos para o vizinho, olhava para a TV, olhava para ele. Daí a pouco ele também estava vendo televisão. Quando dava nove da noite ele falava: “Ah, vou embora”.  “Fica aí, é tão gostoso quando você vem”.
Cuidado! Estou falando de uma coisa que parece frouxa com alguns fios que foram esgarçando com o tempo.  E as crianças foram crescendo também habituados com essa possibilidade de não precisar ter essas relações intensas e duradouras.
Mario Sergio Cortella
Fonte: Portalraizes – ACESSE !!